AS COISAS QUE EU CARREGO

Como presente de Natal o meu marido, que tem um humor discreto e pontiagudo, deu-me um livro que virou sensação por aqui. É um livro pequeno e fácil de ler de uma japonesa de trinta anos especialista em organização. Ela, a autora, tornou-se uma celebridade em seu país, na Europa, e agora também nos EUA, por empreender um método de organização baseado no desapego e no respeito pelos objetos que escolhemos para dividir a casa, nossos espaços íntimos e nossa rotina. O nome ocidental da autora é Marie Kondo e o livro – ainda não publicado em português – é “The Life-Changing Magic of Tidying Up – the Japanese art of decluttering and organizing” (A Magia Extraordinária da Arrumação – a arte japonesa de desentulhar e organizar).

Capa do livro e foto da autora

 

Quando recebi o presente dei uma risadinha e olhei com desconfiança o meu marido. Qual a mensagem disfarçada dentro daquele presente? Sou eu que sempre resmungo em casa sobre a incapacidade dele de jogar fora as coisas que não mais fazem parte da vida dele. Mas é ele quem é sistematicamente mais organizado do que eu. Eu pratico o desapego e ele pratica a organização. O problema que nossas praticas não se casaram ainda, vivem como amigas solteiras que dividem apartamento e no dia da faxina geral batem boca e ficam sem falar uma com a outra por dias até a confortável ordem preguiçosa se instalar novamente. Levei o livro para o banheiro e lá deixei, seria uma boa leitura para se fazer na privacidade do descarrego.

 

Eu esqueci do livro por completo. Quatro meses depois, quando começou surgir a necessidade de abrir a casa para tirar o cansado ar do inverno e deixar o novo ar da primavera entrar, eu lembrei-me do livro e comecei a lê-lo. Eu disse que o livro é de leitura fácil, mas é de difícil assimilação. Marie Kondo propõe que nós tratemos todas as coisas, mesmos os objetos inanimados, com gratidão e desapego. Que percebamos que eles, os objetos, são impermanentes como a vida que incessantemente se transforma. Seus conselhos são transformativos de hábitos. Por exemplo, ela diz que não devemos desentulhar um pouquinho a cada dia. Mas, devemos fazer de forma radical em um só dia começando de preferência às seis da manhã, em silêncio, e iniciar o processo por categorias, roupas, sapatos, livros, papéis, cozinha, etc.

Cada peça deve ser tocada, olhada e refletida se ainda há sentido, se a peça ainda trás alegria para a vida de quem a possui. Se não, deve-se dizer obrigada pelo tempo juntos e deve-se dispor das peças com carinho. Esse procedimento é uma íntima conversa com você mesma e Marie Kondo diz que por isso deve ser feito em silêncio, ouvindo seus sentimentos e intuições. Ela compara essa ação como sentar em meditação e colocar-se presente no aqui-e-agora.

A organização das peças que ficaram devem também acontecer com o mesmo respeito. Marie Kondo fala longamente de como dobrar e organizar as meias, por exemplo. Ela diz que fazer bolinhas das meias, ou dar-lhes um nó para não separem-se não ajuda as meias a descasarem do pesado trabalho que possuem. As meias precisam de conforto para respirarem nas gavetas. Então colocá-las juntas e dobrá-las três ou duas vezes, dependendo do tamanho da meia, formando um retângulo com a abertura da meia para cima e os dedos para dentro é a melhor forma de acomodá-las.

 Eu decidi começar a prática do radical desapego e organização proposto por Marie Kondo pela minha bolsa. Quais são as coisas que eu carrego? Com essa pergunta me lancei em uma intrigante des-coberta do peso da minha carga e identidades.

 

Conteúdos da minha bolsa

Lápis, canetas coloridas, canetas esferográficas, borrachas, usb drive, um estojo com grafite para lapiseira, tudo em uma bolsinha de nylon preta com caveirinhas, e um caderno para anotações. A presença desses objetos na minha bolsa causam-me conforto com a certeza de que posso registrar o acontecido, como se eu pudesse agarrar o vivido para além da minha frágil memória e, pelo menos pelo registro, fixar o impermanente. Descobri uma das minhas neuroses nesses objetos que carrego com grande felicidade.

Baton, protetor labial, “piranha” para prender o cabelo, álcool para as mãos, fone de ouvidos, kindle de capa vermelha, bolsinha com OB e absorventes, telefone celular, chaves e minha carteira são os pragmáticos imperativos presentes na minha bolsa sempre, pelas óbvias razões de estar preparada para o óbvio. Estar preparada para o esperado, é assim que navego os meus dias: conforme o esperado.

Resolvi olhar a minha carteira.

Minhas identidades

Na minha carteira há cartão de débito do banco HSBC, visa cartão de crédito, Gap cartão de crédito, cartão de desconto da farmácia, cartão de milhas de companhias aéreas. Esses cartões conferem à mim um status de consumidora do mundo das mercadorias. Ou melhor, uma privilegiada consumidora que costuma viajar e acumular milhas. Ou ainda, uma consumidora alienada que não se importa com as condições de produção das roupas da Gap pelos explorados jovens de Bangladesh. Não adianta eu dizer que não uso o tal cartão. Ele está na minha carteira, me acusando.

 Na minha carteira há também cartões de planos de saúde meu e do meu filho, plano dentário meu e do meu filho, cartão do meu tipo sanguíneo, de membro do Museu de Belas Artes de Boston, de membro do Museu de Ciências de Boston, de membro do Aquário de Boston, cartão da biblioteca pública. Listar a existência desses cartões na minha carteira fez-me sentir como uma mãe responsável que cuida da saúde da família e da formação cultural dos seus! Uma patrona da arte e da ciência! São cartões de alimentação do ego, das identidades que criei para mim.

 Além dos cartões já mencionados, há o cartão da academia, o cartão do estúdio de yoga, o cartão do Raul Gonzales III que é artista talentoso e meu professor de desenho, e selos para cartas. Olhar esses cartões fez-me perceber como a minha vida mudou muito e rapidamente. Um ano atrás eu não tinha tempo para escrever cartas, exercitar, fazer yoga, ou mesmo pensar em desenhar.

 Em um compartimento mais visível da minha carteira, há a minha carteira de motorista expedida pelo estado de Massachusetts. Lembro que fui fazer o teste para a carteira as três da tarde do dia 24 de dezembro, véspera de natal! Achei que era um engano do computador ter marcado o teste para aquele dia. Quem trabalharia em uma repartição de atendimento público, que não seja de segurança ou saúde, na tarde véspera de natal? Ninguém no Brasil. Mas a sala de espera estava cheia. Ao ser chamada a minha senha, o funcionário que me atendeu perguntou imediatamente que perfume que eu estava usando. Espantada com a inusitada pergunta e imaginando que ele iria reprovar a minha afronta olfatória, eu disse gaguejando que era Chanel no. 5. Senti a pele do meu rosto aquecer com a vergonha de ostentar um cheiro caro. O funcionário pediu para eu escrever o nome do perfume em um papel e perguntou se as mulheres gostam desse perfume. Eu disse que eu gostava. Ele disse que ao terminar o trabalho às cinco ele iria comprar o tal perfume para dar de presente para a sua namorada. Sempre que olhar para a minha carteira de motorista eu vou lembrar dessa estória e vou lembrar da minha vergonha.

 

Eu carrego na minha carteira duas medalhinhas de santas. Uma da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e outra da Nossa Senhora de Nazaré. Ambas foram-me dadas pela minha mãe. Com essas senhoras eu não esqueço do bairro que vive em Belém, o Telégrafo, e nem da cidade de Belém. Com essas duas senhoras eu cruzo a cidade em boa companhia.

Não carrego muito dinheiro na minha carteira, mas o status de ter o crédito em cartões. Também carrego o cartão do metrô de Boston e do serviço de aluguel de bicicletas. Esses cartões me fazem dormir um pouco melhor sabendo que tento fazer a minha parte para emitir menos CO na atmosfera.

Ontem eu comprei dois ingressos de 5,00 dólares para ver uma palestra com Lydia Davis e outra com Miranda July, duas intrigantes escritoras americanas. Carrego os ingresso na carteira para ser usado na semana que vem. Carrego um novo interesse.

 Ao final, eu joguei fora o cartão da Gap. O resto ainda me traz alegria e conforto. O resto ficou. Mas, seguindo o conselho de Marie Kondo, olhei para cada objeto com compaixão por mim e gratidão pela presença deles na minha vida.

 Olhar para os objetos que eu carrego, me fez pensar nas coisas que me carregam; nas coisas que me constituem. Memórias, ódios, amores, pecados, vergonhas ... mas isso é coisa para um outro blog.

 Você já olhou assim para a tua carteira? Quais são as coisas que você carrega?