Porra Brasil, assim não dá mano!

Sexta-feira, depois e assistir um comovente espetáculo de dança, no qual as memórias e sentimentos pessoais são expostos nos corpos dos dançarinos, artistas do movimento, eu voltei para casa com meu marido e filho em um carro que chamamos pelo nosso celular. O motorista do serviço Uber que nos atendeu era do Zimbábue, mas como eu, ele já morava em Boston há mais de dez anos. Ele perguntou de onde eu era, quando respondi que era brasileira ele logo abriu um sorriso e falou que um dia gostaria de visitar o Brasil. Falou do carnaval e comentou receoso do fracasso da última copa do mundo, da goleada de 7X1 que levamos da Alemanha. Meu filho de 11 anos que já estava sonolento dá a sua opinião: “Agora o Brasil precisa ser bom em outra coisa. Mas eu não sei no quê.”

Calei-me em tristeza. Havia lua azul no céu, ficar triste parecia não caber na expectativa da noite. Mas, como ficar diferente? Meu desejo era que meu filho, que é tanto brasileiro quanto norte americano, tivesse uma orgulhosa e bela imagem do Brasil. Lógico que o Brasil é bom em várias coisas, pensei. Decidi que iria mostrá-lo as coisas que o Brasil é bom.

Acordei no dia seguinte com este intuito guiando meus movimentos e abri o computador em busca do bom no Brasil. Encontrei estas notícias:

(1) Trem passa por cima de corpo na estação de Madureira no Rio (????) Corpo? Eu achei que estava lendo errado. Mas havia um corpo humano nos trilhos do trem e a empresa SuperVia que administra o transporte de trem do Rio de Janeiro autorizou que um segundo trem passe por cima do corpo para não causar atrasos em seus trens. Isso não é livro de ficção absurda! É noticia de jornal! Brasil, agora estás para além da banalização do mal!

Ainda sem conseguir acreditar e com o estômago embrulhado, eu mudo de mídia e leio um post do meu amigo no FB, que é a segunda notícia:

(2) Em ato de racismo, indígenas são expulsos de ônibus de viagem (!!!!???). Como assim, “são expulsos?” Eu não entendi. Lendo a matéria fica evidente mais um crime de racismo perpetrado com os índios. Brasil, nós já expulsamos os índios de suas terras, nós já destruímos a cultura deles, nós já aniquilamos as tradições deles, nós já lhe demos doenças que eles não tinham, e agora os poucos que sobreviveram ao nosso massacre histórico não podem viajar de ônibus, Brasil??? O que está acontecendo?  Brasil, porque a povo do teu solo anda se orgulhando de sua própria ignorância e fica achando que racismo é bom para provar quem é melhor? Mas racismo é crime em tuas leis, Brasil! Haverá punição para este crime?

Porra Brasil, assim tá foda! Assim não dá mano!

Ligo o rádio para me distrair. Está na hora do meu programa humorístico favorito na rádio pública nacional (NPR) dos EUA que vai ao ar aos sábados. Nessa hora a piada era que os atletas em competições que serão feitas nas águas das lagoas do Rio de Janeiro durante as Olimpíadas de 2016 precisarão deixar seus testamentos redigidos devido a poluição das águas.

Desligo o rádio. Volto ao computador. Há um e-mail sobre greve nas universidades federais. Não sabia das greves. Procuro notícias sobre a greve e não encontro nada nos principais jornais do país. Aí encontro o blog de Maíra Kubík Mano, professora da UFBA com a terceira notícia:

(3) 60 dias de greve nas universidades federais: por que isso não é assunto? A presidente foi eleita com o tema de campanha “Brasil, Pátria Educadora” e o que está acontecendo com o projeto de investimento na educação? Porque os jornais não estão documentando o golpe de destruição da universidade pública brasileira? Educação de qualidade não interessa à ti, Brasil? Será que a fábula de enaltecer a ignorância está sendo acreditada pelo povo do teu solo, Brasil? Como pode um pais desenvolver-se sem que seus professores sejam valorizados pelo seu trabalho e sem investimentos em suas ações educadoras e criações acadêmico-científicas?

O sorriso do motorista do Zimbábue ao me identificar como brasileira respondeu à uma imagem fundada nos clichês que temos de ti Brasil, país que se acreditava abençoado, onde nunca haveria terremotos, inundações, tufões, secas, deslizamentos de terra e outras intempéries naturais. Bom, esse clichê já dançou a muito tempo, né Brasil. Tu és igual a todos os outros países que abusam da natureza e sofrem as consequências de seus atos gananciosos e corporativos.

Mas também existiam outros clichês, que pra quem te vê de longe Brasil, ainda parece real. Clichês que criaram a falsa identidade brasileira, como: brasileiro é povo acolhedor, hospitaleiro; brasileiro é a encarnação suprema do futebol arte; brasileiro não é racista; brasileiro é só alegria, samba e bunda.

Olhando de longe até parece verdade, mas de perto é visível as ilusões criadas pela tua imagem clichê, Brasil. Por exemplo, a alegria brasileira considerada falsamente inata nas pessoas do teu solo, sempre foi ri de sua própria miséria; sempre foi uma alegria triste, como o único jeito de suportar a dor de viver em ti, Brasil, dia-após-dia. Dor empurrada com a barriga seca, Brasil.

O samba, criado pelos desprezados dos teus ricos salões de festa, sempre falou das tristezas do teu povo, Brasil. Desde de sempre foi assim.

O povo que tu, Brasil, dizes que é afetuoso e acolhedor, é assim “só com os de fora,” como dizia a minha mãe. Mas, para os de dentro do teu solo, o povo agride, grita, bate, fere e mata. Basta ver o golpe desferido por Eduardo Cunha na Câmara  para colocar na cadeia “menores” “perigosos,” em vez de dá-lhes condições materiais e culturais de vida digna. Não há afeto com o outro que está dentro de ti, Brasil.

Em ti, Brasil, há racismo e sempre houve. Tu fostes o país que mais importou escravos do continente Africano e fostes o último país a abolir a escravidão – somente nos termos da lei, diga-se de passagem. O teu racismo é evidente, basta ver as estatísticas de morte de jovens pretos, ou as estatísticas de quem é médico, engenheiro, juiz, advogado, dentista, veterinário e tantas outras profissões que precisam de um diploma das tuas universidades, Brasil.

Outro clichê corroído é de que tu és um país acolhedor, Brasil. Como tu podes pensar que és acolhedor, Brasil, quando nas tuas ruas há crimes sendo cometidos cotidianamente contra a população LGBTQ+, negros, mulheres, pobres e pessoas de diferentes credos. O ódio propagado por pastores evangélicos para milhões de seus fiéis no teu solo não é uma discurso de acolhimento, Brasil; é um discurso segregacionista, desrespeitoso e sem amor. Mas sem dúvida alguma é um discurso lucrativo para os bolsos desses pastores, e de outros aproveitadores da miséria alheia que esperam o momento certo para vender mais falsas imagens e criar falsos medos. E tu conversas com teu povo sobre isso, Brasil? Tu dialogas para desfazer os medos, para acabar com essa papagaiada de oferecer falsos culpados, para esclarecer sobre os problemas reais e encontrar soluções honestas de redistribuição de renda, Brasil? Eu não vejo isso acontecer, Brasil.

Quando todos os clichês se desmancham e formam a lama corrosiva da tua real imagem, aí é quando pastores semeadores de ódio, empresários gananciosos, políticos corruptos que parecem crescer desordenadamente no teu solo, Brasil, veem a oportunidade de lucrar vendendo falsos culpados para os temores criados, como os “menores” “perigosos,” o preto que tira a vaga do branco na universidade, a população LGBTQ+ que quer destruir a família, o pobre que é quer viver no bem bom sem trabalhar e receber a bolsa-família. E tu não esclareces essas falsidades, Brasil! Fala sério!

Há até lucro no falso clichê da beleza da bunda natural da brasileira, basta ver o aumento de implantação de silicone nessa área do corpo.

Os clichês não te sustentam mais e a gente vê quão feia, torturada, violentada é a tua imagem, Brasil.

Os teus clichês foram destruídos e essa destruição, bem-vinda ao meu ver, é visível até para as crianças que, como o meu filho, não sabem no quê tu, Brasil, poderias ser bom.

Hoje eu percebi, que melhor do que o meu desejo que meu filho tenha uma imagem orgulhosa e bela de ti, é ele ter uma imagem real do país que és, Brasil. Diferente de mim, ele não foi enganado pelos clichês que me deram uma falsa imagem de ti, Brasil.

Eu estou com meu filho, Brasil tu és bom no quê mesmo?

Se ajudar na tua auto-estima Brasil, eu posso dizer que tu és igual à todos os outros países que privilegiam o lucro, o ódio, o preconceito, a ignorância. Essas com certeza não são boas companhias para ti, Brasil.

Por favor Brasil, dá um sinal de que teus políticos pararão de se preocupar com um projeto pessoal facista ou de um grupo de privilegiados, e se engajarão em um projeto de país que preza pela dignidade, saúde, educação, trabalho, lazer, cultura, diversidade, respeito e bem-estar do seu povo.

Eu ainda quero acreditar que é possível construir uma outra imagem de ti, Brasil. Talvez uma imagem menos bruta.