Sem Marcas, Quiçá Tenhamos Aderência

Sabe os Post-it, esses papéis quadradinhos ou retangulares, coloridos, que usamos para escrever coisas que queremos lembrar e grudamos perto da tela do computador,

 

no espelho do banheiro, na porta da geladeira, dentro da nossa bolsa, ou usamos para marcar páginas dos livros e fazer anotações curtas?

Eu uso sempre para não me perder na confusão dos meus dias. Tenho mania de espalhar Post-it pela casa. É a melhor forma que encontrei para aliviar a carga da memória. Uma vez escrito no Post-it, a cabeça fica livre do peso de ter que lembrar e aí sobra espaço para outras coisas…


 

Uma propriedade maravilhosa do Post-it é que a cola toca de leve na superfície, não agride, não deixa marcas. As mensagens grudam um tempo suficiente na verticalidade, e, eu acho que quase uma vida inteira, com a ajuda da força gravitacional, na horizontalidade. Há repouso e movimento nos dois planos, então não importa em que posição você gruda o papel do Post-it, este pode ser removido sem deixar vestígios visíveis a olho nú de sua existência prévia naquele lugar. Não causa danos aparentes.

 Eu acabei de ler o livro “Quiçá” da Luisa Geisler que me deixou com a sensação de Post-it.  Não sei se alguma vez você sentiu isso, de terminar um livro com a sensação corporal e imaginativa de um objeto.

 Sentiu?

Para mim foi a primeira vez.

 Luisa escreveu o livro com 21 anos e o mesmo ganhou o prêmio SESC de literatura em 2012. Ela é considerada um dos jovens talentos da literatura brasileira pela revista Granta. Ambas as premiações merecidas. E, pessoalmente eu acho que propiciar ao leitor sentir um objeto após a leitura de uma estória – essa conexão entre modalidades visuais, espaciais e imaginativas cognitivas – é em si um feito sem timidez.

 Deixa eu tentar explicar essa sensação de Post-it.

 O livro é uma estória com uma menina, Clarissa, de onze anos de tradicional classe média alta, que estuda em uma tradicional escola privada, que vive uma rotina tradicional de corrida de aulas particulares, que se entope de comidas de micro ondas e salgadinhos, que tem pais em um casamento tradicional com carreiras bem sucedidas vivendo a correria tradicional do capital. Há um rompimento desse torpor tradicional com a vinda de Arthur, um primo de 18 anos, para morar com a família por um ano. Arthur traz consigo uma bagagem de depressão, suicídio e rebeldia. Esse é o elemento de conflito escolhido por Luisa.

O livro não segue linearidade. É ousado. A narrativa mostra fragmentos múltiplos, como trechos de Saramago, trechos em italiano, diálogo em inglês, anúncios. Como vários Post-its espalhados pela casa.

 Pela estrutura da estória, não há densidade. Mas na narrativa há um entrelaçamento de pessoas (pais, mães, tias, tios, avós, primos, primas, amigos, colegas, namoradas) que passam pela vida umas das outras provocando movimentos nos planos verticais e horizontais. Esses entrelaçamentos são contados pela narrativa adolescente de forma monotônica sem deixar vestígios visíveis. Sem causar “danos” aparentes. Como um Post-it.

 Clarissa e Arthur são adolescentes hoje. E eles, mais do que as gerações passadas, encarnam o espírito anti super-bond. É a natureza anti permanente, liquída. Os pais de Clarissa ocupam-se de suas conquistas, na corrida rasa de sem metros para lugar nenhum, e estabelecem com a filha uma relação não presente, não invasiva, que eles acreditam que não deixará marcas traumáticas. Como um Post-it.

 Clarissa, por sua vez, navega no mundo agradando as expectativas e fazendo de tudo para não atrair visibilidade, não quer deixar vestígios. Como um Post-it.

 Arthur tentou fisicamente se fazer invisível, mas fracassou, ficou com marcas visíveis. É o personagem que com suas marcas provoca o movimento da estória. Mas, por agora, na narrativa de Luisa, visita a escola, fuma, bebe e se envolve sem entusiasmos com outros rapazes e moças. Como um Post-it.

 Seria o Post-it o mais profundo que conseguimos chegar de entender a impermanência da vida? Sabemos que a vida está sempre alterando-se, mas preferimos que esses distúrbios inerente à vida aconteçam sem dores; sem deixar marcas. Como um Post-it.

 Os dinossauros existiram no planeta cerca de milhões de anos atrás. Sabemos disso porque paleontólogos estudam as marcas deixadas por esses seres. Geólogos estudam a idade e os processos de vida da terra pelas camadas adensadas deixadas nas pedras, nos solos. Pessoalmente, prefiro que pessoas e objetos passem pela minha vida marcando-me. Nós somos as nossas marcas, os vestígios deixados de um tempo passado. Sem nossas marcas, quiçá tenhamos aderência.

 “Quiça” não é o trabalho de uma escritora madura, mas é uma obra de causar provocações. Grude um Post-it no seu computador para lembrar-se de ler esse livro curioso.